Em 2015, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) iniciou a campanha Comida é Patrimônio nas redes sociais. No decorrer do ano, desdobrou-se em oficinas criativas e uma exposição itinerante, com passagens pelo Rio de Janeiro, Brasília e Buenos Aires, na Argentina. Para comunicar a ideia de que a alimentação é um bem comum a ser preservado – pela agrobiodiversidade, sociabilidade, pelo saber-fazer culinário e pelas representações simbólicas – a campanha foi desenvolvida em quatro eixos: comida é bem material e imaterial; comida é afeto, identidade e memória; comida é diálogo de saberes; e modos de viver, produzir e comer (link dos artigos).
Para cada eixo, apresentamos um artigo que, junto com os pensamentos-pimenta, tem a proposta de engajar pessoas para pensar sobre os sistemas alimentares tradicionais, enraizados nas culturas e nos saberes de povos e comunidades. Neste quarto e último artigo da campanha trataremos o eixo modos de viver, produzir e comer.
De acordo com a carta política do FBSSAN, é urgente enfrentar as contradições brasileiras no campo da soberania e segurança alimentar e nutricional. O Brasil reforça modelos convencionais excludentes e concentradores. Mantém um modelo agrícola baseado na monocultura de grande escala, com elevado uso de agrotóxicos. Muitos pesticidas, herbicidas e fungicidas usados nas lavouras brasileiras são proibidos em vários países da Europa e nos Estados Unidos.
Esse sistema de produção alimentar é orientado pela racionalidade econômica, na qual prevalece o domínio da economia e do lucro. Ostenta aparente riqueza, produtividade e eficiência para a grande massa da população, mas esconde, por trás de seus louros, as ambiguidades contidas na cadeia alimentar, orientada para abastecer carros e estômagos dispostos a pagar por combustível e comida, excluindo os agricultores da agricultura; os saberes autóctones e populares dos cultivos; e os povos de seus territórios, ultrapassando os limites da natureza. As evidências de que algo não vai bem podem ser percebidas pelos trabalhadores do campo e da cidade na saúde, na deterioração do meio ambiente ao seu redor, na intensidade do clima, na nostalgia das refeições familiares à mesa, ou na falta de tempo para cuidar da alimentação familiar.
Patrimônio alimentar: as imagens das contradições e disputas
Com o passar dos dias, os sinais de uma crise de fundamentos da civilização, profunda e generalizada, estão cada vez mais visíveis. É como se revelássemos um negativo das realidades que coexistem e coevoluem no país. Quanto mais luz, maior a visibilidade e definição de cores, formas e texturas. Mas, na penumbra, tudo parece razoável, talvez um mal necessário. Entretanto, se nos detivermos com mais atenção nesse processo de visibilidade, encontraremos um colorido vivo que emergem das sobras com vivacidade, continuamente. Basta deixar entrar mais luz para contemplar as pequenas e grandes transformações que ocorrem, em meio à resistência em construir outros mundos de vida e futuros possíveis.
Os novos movimentos sociais não somente investem na defesa de direitos tradicionais, em oposição a um regime de exclusão e marginalização, numa luta pela sobrevivência. Esses movimentos de reapropriação social da natureza, formado por camponeses, afro-descententes e povos indígenas da América Latina, são ao mesmo tempo movimento de resistência e re-existência. “O que reinvindicam não são apenas direitos à natureza, mas um direito do ser cultural”, explica o pensador mexicano Enrique Leff, autor do livro Racionalidade Ambiental – reapropriação social da natureza.
Através de lutas tradicionais, esses povos re-existem. “Voltam a assumir sua vontade de poder ser como são; não como tem sido, mas como querem ser. Despertam seus sonhos, renascem suas utopias, para reinventar sua existência, para passar do ressentimento pela opressão ao re-sentimento de suas vidas”, analisa Leff. No contexto político, a essência dessas reivindicações permanece sendo a conquista de espaços em um mundo objetivado e economicizado.
Esses novos retratos podem ser encontrados nos bancos comunitários de sementes do semiárido; na produção de sementes agroecológicas a partir de variedades de domínio público; da autoregulamentação dos conhecimentos tradicionais sobre as plantas medicinais do Cerrado; ou da constituição de um fundo público das quebradeiras de coco-babaçu, através da repartição de benefícios que reconhece o conhecimento tradicional associado . As revelações dessas imagens com novos modos de viver, produzir e comer podem ser vistas em iniciativas como o Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil; a Agroecologia em rede, com experiências, pesquisas e contatos; ou, ainda, campanha Semiárido que alimenta, lançada pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). São apenas algumas fotografias de um volumoso álbum em plena construção, e re-construção, que vem sendo reveladas de norte a sul do Brasil.
A verdade sobre a comida: alguns flashes
O processo de revelação traz à luz as formas originais da alimentação empacotada com químicos e conservantes, destinada ao preparo ou consumo rápidos. O manifesto Comida de verdade, publicado em 2015 pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), chama atenção para o fato de que “para conhecer a comida de verdade é preciso conhecer a verdade sobre a comida”.
Ao descrever as características desses modelos alimentares existentes nas culturas regionais e locais, o documento informa que “comida de verdade garante a soberania alimentar; protege o patrimônio cultural e genético; reconhece a memória, a estética, os saberes, os sabores, os fazeres e os falares, a identidade, os ritos envolvidos, as tecnologias autóctones e suas inovações. É aquela que considera a água alimento. É produzida em condições dignas de trabalho. É socialmente justa. Comida de verdade não está sujeita aos interesses de mercado”.
Outro documento contribui para esclarecer a pseudo-imagem da alimentação industrializada. Segundo o Dossiê Impactos dos Agrotóxicos na Saúde, lançado também em 2015 pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a expansão da monocultura no Brasil (especialmente cana-de-açúcar, milho, soja e algodão) entra em conflito com povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas, colônias de pescadores, agricultores rurais e campesinos, bóias-frias que trabalham nos canaviais. São populações que vivem próximas aos locais de pulverização aérea de agrotóxicos para sustentar os monocultivos, que inviabilizam e tornam invisíveis outras maneiras de produzir que não sejam alimentos-mercadorias. Ao contrário, a agricultura sustentável, protagonizada pela agroecologia, é capaz de viabilizar e tornar visível, a pluralidade de saberes no ato de cultivar alimento-comida.
A agricultura familiar subsiste, não sem grandes dificuldades, às políticas econômicas desfavoráveis. O apego aos seus territórios e a dinâmica na construção de suas identidades permite que os camponeses mantenham a vigência dos seus modos de vida. São sobreviventes de largas lutas, portadores do patrimônio, tradição e cultura agrícola e alimentar, que os faz portadores de um projeto de futuro.
Modos de vida tradicionais preservam o patrimônio alimentar
O uso e a importância da biodiversidade na alimentação e na nutrição remontam à própria história da civilização. O uso da biodiversidade se materializou com a domesticação das plantas e dos animais ao longo dos tempos, e com o manejo e extrativismo de produtos da flora, da fauna e, inclusive, micro-organismos. Esse processo continua até os dias de hoje e forma a base das atividades agrícolas, pecuárias, pesqueiras e florestais.
Um modo de vida comporta pessoas com suas capacidades, seus meios de vida, a forma de se alimentar, a geração de renda e ativos – tangíveis e intangíveis. Os ativos tangíveis se referem a recursos (terra, água, rebanhos, equipamentos e ferramentas, por exemplo) e estoques (alimentos, roupas, jóias, poupanças). Os ativos intangíveis dizem respeito às reivindicações (demandas e apelos feitos por suporte ou acesso material, moral ou prático); e acesso (entendido como a oportunidade prática de se utilizar um recurso, estoque ou serviço, ou obter informação, material, tecnologia, emprego, alimento ou renda). É a partir dos ativos que as pessoas constroem ou conseguem seus meios de vida, utilizando-se de trabalho físico, habilidades, conhecimento e criatividade.
Quando se leva em consideração que a comida de verdade é um patrimônio, a biodiversidade é o ativo essencial. É fundamental também para a manutenção e reprodução dos modos de vida e cultura dos povos e sociedades tradicionais e tribais. A relação mais estreita com o ambiente, onde se reproduzem social e culturalmente, é um dos frutos desse ativo. Cria-se, assim, uma situação de sustentabilidade nas suas formas de utilização dos componentes da biodiversidade, adaptada às diversas condições dos ecossistemas nos quais se localizam e se perpetuam como saberes tradicionais constantemente.
Nesse contexto, o conhecimento tradicional não se restringe aos organismos, como componentes da biodiversidade, mas inclui percepções e explicações sobre a paisagem, geomorfologia e a relação entre os diferentes ambientes físicos e os seres vivos, conforme defendem Toledo e Barrera-Bassols. Ao refletir sobre o quarto eixo da campanha Comida é Patrimônio, buscamos indicar um paradigma baseado no convívio harmonioso com a natureza, que preserva a biodiversidade, sugere o reconhecimento e a valorização dos saberes dos povos.
O entendimento da comida como um patrimônio garante a permanência destes povos, que mantêm a biodiversidade na produção rural, e a manutenção e ampliação da agrobiodiversidade como estratégia de fortalecimento da soberania e segurança alimentar. Os lugares da agricultura moldam a forma com que esta é apropriada pelos agricultores, enquanto ativos que compõem seu modo de vida, e têm papel fundamental para a construção de estratégias de reconhecimento e acesso a políticas pública. São processos ricos e frutíferos, reveladores de múltiplas imagens dos modos de produzir, comer e viver.
A relação íntima das comunidades tradicionais com a natureza faz dessas populações os guardiães não só do patrimônio alimentar, mas resguarda a vida futura na terra, conforme assinala o filósofo alemão Hans Jonas, autor do livro Princípio Responsabilidade. Para fundar sua ética, alicerçada na responsabilidade, o filósofo propõe um imperativo: “Aja de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra”. Ou então, dito negativamente: “Aja de modo que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”. Ao desenvolver e discutir os escopos dessa nova ética, ele faz observações sobre a produção de alimentos, registrando que as tecnologias agrárias de maximização (de produção) têm impactos cumulativos negativos sobre a natureza como: poluição das águas, salinização e erosão dos solos, mudanças climáticas pelo desmatamento, segundo ele, castigos de uma agricultura cada vez mais intensiva.
A abordagem dos modos de vida pode ser entendida a partir da maneira como as pessoas se relacionam com tecnologias, especialmente considerando a promoção de iniciativas locais de agroecologia. Na agroecologia, os sistemas agrícolas tradicionais são valorados, geram tecnologia e conhecimento. Trata-se de uma tecnologia receptiva à heterogeneidade de condições locais; não procura transformá-la e sim melhorá-la. Assim, o conhecimento agrícola tradicional, somados aos elementos da ciência agrícola moderna, não transformam nem modificam radicalmente o ecossistema, conforme sustenta o chileno Miguel Altieri, considerado o pai da agroecologia.
Retornando à carta do FBSSAN, enfatizamos o posicionamento do documento em relação a este modo de produzir, que combina ciência e prática: “a agroecologia tem se afirmado como o melhor meio de produção de alimentos saudáveis que respeitam e promovem a diversidade social, biológica e cultural, trazendo benefícios para toda a sociedade e para o planeta, hoje, e garantindo o acesso a esses alimentos por gerações futuras. Um grande número de experiências locais sinaliza caminhos possíveis e exitosos na direção de reaproximar a produção e o consumo de alimentos com base em circuitos regionais ou de proximidade”.
Talvez deva se mudar as perguntas na busca por ouvir novas respostas para velhos problemas, como o da fome no mundo, a exploração dos recursos naturais em favor do lucro e do consumismo desmedido. Ao invés de se perguntar, como repetidas vezes ouvimos na mídia, “é possível alimentar a população com produção local, de base agroecológica?”, deveria se buscar uma pergunta mais diversa, tal como, “por que o atual modelo agrícola, hegemônico e concentrado, reproduz incessantemente pobreza, injustiça e desigualdade?” ou “Até quando esse pseudo sistema alimentar continuará existindo?” Em favor da conveniência e da praticidade, a sociedade terceiriza para grandes corporações, cerca de dez aproximadamente, o modo como se alimenta em detrimento de outras vias capazes de colaborar para alimentar saberes, pessoas e mundos de vida. As respostas estão na luta diária, de Davis contra Golias, que têm permitido preservar por gerações a agrobiodiversidade, chave para assegurar patrimônio alimentar.
Ao apresentar brevemente a importância de preservar os modos de vida, o FBSSAN encerra a primeira fase da campanha Comida é Patrimônio, com o objetivo de valorizar as regionalidades agrícolas e culinárias, apresentando-as como instrumentos de fomento e proteção do patrimônio material e imaterial. O entendimento da dimensão cultural do alimento nos leva a considerar o pleno respeito da pessoa humana, representada por aquele que cuida e preserva do patrimônio alimentar protegendo a biodiversidade. O alimento nos traz as ligações mútuas entre todos, e nos faz participantes do cuidado de nosso entorno. Celebremos os múltiplos modos de produzir, comer e viver dos territórios brasileiros. Há outros filmes para revelar, outras imagens para construir, muitos retratos para preservar
A campanha Comida é Patrimônio é realizada em parceria com a Malagueta Comunicação.
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Equipe Campanha Comida é Patrimônio
Coordenação executiva e editorial: Juliana Casemiro e Vanessa Schottz (FBSSAN)
Texto: Juliana Dias e Mónica Chiffoleau
Revisão: Juliana Dias, Mònica Chiffoleau, Juliana Casemiro e Rozi Billo
Edição de imagens: Carolina Amorim
Fotos: Ana Nascimento/MDS