O segundo Encontro de Pesquisadores em Segurança Alimentar e Nutricional (Enpsan) culminou com o lançamento da Rede Nacional de Pesquisadores em SAN, entre os dias 05 a 07 de outubro de 2016, em Brasília.
Flávio Valente, que começou esse trabalho há 30 anos, comentou sobre seu entusiasmo ao ver a
presença maciça de jovens envolvidos com o tema, os avanços nas diferentes áreas de conhecimento e a interação com a pesquisa intersetorial e sistêmica. “Na época, quando começamos, o campo de estudo em Segurança Alimentar era fragmentado. Havia pouca pesquisa na área, estando associada às políticas e programas de governo e não um trabalho de produção de conhecimento. O fato de estarmos reunidos é resultado do trabalho de muitos anos de educação e formação”, afirma Valente, que hoje é coordenador de desenvolvimento da FIAN (FoodFirst Information & Action Network), organização internacional de defesa de direitos humanos, entre eles o da alimentação. Na quarta-feira, dia 16, ele estará no Brasil para lançar a publicação Observatório do Direito à Alimentação e à Nutrição 2016: manter as sementes nas mãos dos povos, lançada pela FIAN Brasil e FIAN Internacional, na Fio Cruz, em Brasília.
Valente destaca que o lançamento da Rede chega num momento crítico, não somente por questões políticas, mas em relação às metodologias adotadas na pesquisa em SAN, entre as quais a análise dos temas, a forma de trabalhar nas áreas que priorizamos e a prioridade das áreas em que atuamos. “Como garantir que os temas mais relevantes para a população sejam efetivamente a agenda e pauta da discussão dos pesquisadores?”, questiona e completa: “logicamente, há sempre uma defasagem entre as demandas e as pesquisas, mas é fundamental, que as investigações não se descolem desse objetivo.”
Na área de SAN, os instrumentos criados, como os Consea’s (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), a participação popular e a própria relação de aproximação como os movimentos sociais de base, permitem manter os vínculos entre as demandas da população e os objetivos dos estudos, conforme analisa Valente. No entanto, manter o diálogo permanente com os diversos tipos de saberes é um desafio, pois há um buraco na área de pesquisa. “A universidade tende a produzir conhecimento para o mercado e, por outro lado, existe a formação que não, necessariamente, é voltada para o lucro. O financiamento público não é tão forte como deveria ser e as pesquisas passam a ser influenciadas por interesses financeiros. A abordagem da SAN pode ser desviada de seu objetivo principal, promover o bem comum”, defende.
Por isso, Valente adverte que é fundamental garantir a independência da produção científica dos interesses dominantes e hegemônicos, tendo em conta discutir soluções para os problemas enfrentados pela população. Ele sugere para a regulação do financiamento, com diferentes modelos e graus de influência do financiador sobre a agenda de pesquisa e o grau de autonomia, que as universidades, tanto públicas, quanto privadas devem ter, não apenas os temas a serem estudados, mas saber como estudá-los, as suas metodologias e abordagens.
“As abordagens fragmentadas não servem aos interesses da população”, afirma e enfatiza que esse é um desafio para a Rede de Pesquisadores que acaba de se constituir. “Temos massa crítica para avançar nessa discussão para que seja possível garantir coletivamente um espaço de produção para todos que querem produzir ciência independente”, declara. De acordo com o coordenador da FIAN, é preciso que a Rede pense junto às principais áreas que se deve atacar. “É impossível cobrir todo o espectro, mas a definição das áreas passa por entender o que é mais estratégico em cada momento. Exige avaliação periódica a partir da leitura da população. É um mecanismo de troca permanente de um processo político entre camponeses e pesquisadores, no sentido de que haja coerência da pesquisa com as necessidades reais da população”, finaliza.
A dimensão da cultura na SAN
Na perspectiva em apontar áreas de interesse para a pesquisa em SAN, Maria Emília Pacheco,
presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e membro do FBSSAN, destaca a dimensão cultural que está contida na própria definição de SAN. De acordo com a presidente, “analisar as culturas alimentares é entender as formas de resistência à padronização a artificialização de nosso sistema alimentar. Os conhecimentos e práticas, os falares, os saberes e sabores presentes na produção, transformação e consumo dos alimentos, encerram a história e os sentidos da identidade de grupos sociais”. Maria Emília afirma que essa visão nos leva a reafirmar que a nossa biodiversidade é protegida pela diversidade cultural, ou nossa sociobiodiversidade, dos vários segmentos do campesinato, povos e comunidades tradicionais, inseparável da conservação da biodiversidade.
A presidente destaca que vivemos em tempos de grande paradoxo que precisa ser estudado. “Se por um lado o modelo de alimentação industrial e homogêneo e a tendência à medicalização da alimentação buscam dominar o cenário, acompanhamos em vários lugares do mundo movimentos de valorização de sistemas alimentares locais e territorializados”, analisa.
Dar atenção à dimensão cultural da SAN nas pesquisas, segundo Maria Emília, é um convite para pensar sobre que alimentos (não) estamos comendo, assim como propõe o Fórum em sua carta política e a campanha Comida é Patrimônio. “Este é um debate significativo que nos remete a percorrer a história recente sobre a redefinição de patrimônio. No plano internacional, a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, define a obrigação dos países de adotarem medidas de salvaguarda para garantir a vigência do patrimônio cultural. Esta Convenção incluiu a participação de sujeitos sociais antes silenciados, discriminados, como portadores de cultura na gestão do patrimônio cultural em ação conjunta com o Estado”
No Brasil, nossa Constituição Federal de 1988, antecipou-se na história, tal qual é definido no art. 216: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
Tanto Flávio Valente quanto Maria Emília apontam caminhos de estudos, aproximações e abordagens, para a Rede de Pesquisadores em SAN, convergindo pautas e demandas discutidas no encontro com cerca de 300 pesquisadores de todo o Brasil.
Por Juliana Dias
Foto da rede: Ascom/Consea Nacional