Os dois episódios de apreensão e descarte com os queijos artesanais de leite cru e as linguiças, ocorridos em setembro de 2017, deram visibilidade na imprensa para urgência em se adequar as normas sanitárias à produção de alimentos tradicionais, patrimônios da sociobiodiversidade brasileira.
Para contribuir com o debate, o Fórum Brasileiro de Soberania de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) preparou uma reportagem especial. Oito entrevistados trazem um panorama histórico sobre as mudanças na lei, que vêm sendo pleiteadas há pelos menos 10 anos por diferentes segmentos da sociedade civil.
A partir dos fatos noticiados amplamente pela mídia e comentados nas redes sociais, buscarmos reunir as informações e analisar a questão, indicando possibilidades concretas em curso a favor dos produtores da Agricultura Familiar.Nosso intuito é compartilhar informações e diferentes pontos de vistas para que a repercussão dos casos vá além da indignação e mobilize mais pessoas em defesa da comida como um patrimônio, uma das vias de acesso à comida de verdade, bem como de desenvolvimento e fortalecimento da gastronomia brasileira. O especial está organizado em 12 pontos. Confira abaixo e boa leitura!
- Contexto da legislação sanitária brasileira
- A luta da Agricultura Familiar por um sistema sanitário justo
- O contexto global e o risco da padronização alimentar
- Quem dita as regras para assegurar a segurança alimentar e sanitária?
- Uma rede de solidariedade e indignação
- A qualidade do artesanato culinário é a base da gastronomia brasileira
- Uma resolução para a produção artesanal desenhada coletivamente
- O que é qualidade e risco? Um debate de muitas vozes
- Anvisa e o diálogo com a sociedade civil
- 4 anos depois: um olhar sobre a RDC 49
- Quais nos esforços para implementação da inclusão produtiva?
- Outros esforços para incluir a produção artesanal
- Ocupe a cultura alimentar
Normas sanitárias, culturas alimentares e padronização do gosto:
O que está em risco na hora de assegurar a qualidade dos alimentos
Reportagem: Juliana Dias e Mónica Chiffoleau
Contribuições e revisões: Vanessa Schottz, Juliana Casemiro e Bibi Cintrão
No mundo contemporâneo, prevalecem dois modos de apropriação dos recursos do ecossistema. O primeiro é o modo agrícola tradicional ou camponês, que tem origem há 10 mil anos, quando os seres humanos aprenderam a domesticar plantas e animais. O segundo é o modelo agroindustrial, Ocidental ou moderno, surgido há apenas 200 anos. Ao estudarem a importância ecológica das sabedorias tradicionais, os pesquisadores mexicanos Victor Toledo e Narciso Barrera-Bassols, afirmam que esses dois sistemas expressam um conflito nodal entre as formas agroindustriais e as formas tradicionais de produção de alimentos.
Partindo dessa perspectiva, observamos que a tensão está presente na relação entre as normas sanitárias brasileiras e a fabricação de produtos artesanais de origem animal, como os queijos e embutidos; e os vegetais, como as polpas de frutas. Historicamente, a Agricultura Familiar, a Economia Solidária e os empreendedores individuais não têm sido a prioridade nas políticas públicas de produção e comercialização. Ao contrário, as leis excluem os pequenos produtores artesanais que mantêm os saberes e fazeres das culturas alimentares, patrimônio material e imaterial de nossa identidade plural.
Entre os frequentes casos de demonstração desse “cabo de guerra” – que tende a privilegiar a produção industrial de larga escala – estão dois episódios de apreensão e descarte de queijos nacionais à base de leite cru, ocorridos no segundo final de semana de setembro de 2017. Citaremos apenas esses dois, mas é importante destacar que não são fatos isolados, assim como a luta pela mudança desse sistema não é movida somente pelas manchetes de jornais.
A primeira apreensão aconteceu no dia 15 de setembro de 2017, no stand “Bar de Cachorro Quente”, da chef Roberta Sudbrack. Seu ponto estava localizado no espaço Gourmet Square, uma das novidades da sétima edição do evento “Rock in Rio”, realizado entre os dias 15 e 24 de setembro, na Barra da Tijuca. Roberto Medina, idealizador do evento, propôs um espaço voltado para a gastronomia e para a qualidade dos produtos.
“A proposta era mostrar um Brasil diferente ao próprio Brasil e ao mundo. Para isso, queria um cozinheiro que simbolizasse esse propósito”, conta a chef em artigo assinado para a revista Veja Rio. Roberta informa que aceitou o convite motivada pelo espírito de mostrar um repertório afinado com os sabores regionais brasileiros. Mas, logo no primeiro dia de festival, a chef compartilhou em um post no Instagram a notícia da apreensão em seu stand de 80 quilos de queijo produzidos por pequenos produtores de Gravatá, em Pernambuco; e 80 quilos de linguiça, fabricadas em São Paulo. Ambos estavam certificados com o Selo de Inspeção Estadual (SIE), o selo de inspeção dos estados de origem. Entretanto, não tinham o Selo de Inspeção Federal (SIF), que permite comercializar em todo o Brasil e exportar os produtos. A publicação da chef recebeu mais de 42 mil curtidas e 6 mil comentários de apoio.
Durante os 7 dias de festival, a Vigilância Sanitária do Rio de Janeiro (VISA) atuou com cerca de 90 técnicos de diferentes áreas. O objetivo foi fiscalizar as condições higiênicas dos diversos estabelecimentos que faziam parte da cidade do Rock. Foram feitas 682 inspeções, que resultaram em 58 multas e inutilização de 648,97 quilos de alimentos (sanduíches, queijos, linguiças, embutidos, cogumelos, churros, carne de sol, especiarias, e hambúrgueres), por serem considerados impróprios para consumo, conforme a nota no site do órgão.
A Visa informa também que realizou ações de orientação e fiscalização por meio de 36 cursos e inspeções durante a montagem da estrutura. A operação da VISA não está em questão, pois é necessária para garantir as condições de saúde e higiene adequadas em um evento de massa e nos serviços de refeição.
O segundo episódio aconteceu no mesmo fim de semana de setembro, durante o evento Slow Cheese, organizado pelo Slow Food, na cidade italiana de Bra. Os queijos mineiros à base de leite cru foram retirados pelo mesmo motivo: a falta do SIF. Em junho, esses mesmos produtos ganharam medalhas de SuperOuro e Ouro no Concurso Mundial da França, onde foram levados na mala dos queijeiros. Ao retornarem com suas medalhas à Minas Gerais, esses queijos também foram apreendidos.
Está posta à mesa uma das contradições do sistema alimentar moderno, em que o alimento aparece como mercadoria. Nesse modelo hegemônico de produzir, distribuir e consumir alimentos, a incoerência e irracionalidade transitam sem fronteiras. Ma há resistência e luta social e no campo. Nossa proposta é colaborar para aprofundar o debate, mostrando o percurso histórico do conflito entre duas lógicas, dois sistemas de apropriação social da natureza em que há desigualdade na maneira de regular, limitando, a circulação de alimentos, restringindo o paladar e padronizando o gosto em função de interesses econômicos.
1. Contexto da legislação sanitária brasileira
Em 1952 foi publicado o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA – Decreto lei 1.283). De acordo com essa legislação, os municípios regulam a inspeção com o Selo de Inspeção Municipal (SIM); os Estados com o Selo de Inspeção Estadual (SIE); e o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) concede o Selo de Inspeção Federal para o comércio entre estados e a exportação. Há também uma divisão de atribuições entre o MAPA e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ligada ao Ministério da Saúde (MS). A Agência é uma autarquia que integra o Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1990.
Leomar Prezoto – consultor autônomo na área de agroindústria rural de pequeno porte e legislação e inspeção sanitária – considera inconstitucional que um queijo de Pernambuco seja adequado ao consumo local, mas inadequado ao consumo do Rio de Janeiro. “Se o argumento é saúde pública, uma leitura rápida da situação indica que o Rio tem direito à consumir alimentos com segurança sanitária e os pernambucanos não. O mesmo produto é próprio para um Estado e impróprio para o outro”.
Para Prezoto, a questão é comercial e sai do foco da vigilância sanitária, pois a lei de 52 regulamenta os serviços de inspeção de origem animal. Já a VISA atua no transporte, comércio e consumo. “Não tem como um produto ao sair do seu território deixar de ser adequado do ponto de vista sanitário. Fico admirado como profissionais defendem algo como isso, que beira a hipocrisia. Uma legislação como essa não se sustenta”, afirma o consultor.
2. A luta da Agricultura Familiar por um sistema sanitário justo
O esforço em resolver o imbróglio entre MAPA e Anvisa teve um encaminhamento em 2005 devido à demanda da Agricultura Familiar em não conseguir colocar seus produtos no mercado formal. Criou-se um Grupo de Trabalho Interministerial com participação do MAPA, Anvisa, Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDA, atual SEAD- Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário) e a Casa Civil.
“O objetivo era analisar a legislação federal e apontar diretrizes ou soluções. Por unanimidade constatou-se que a legislação era inadequada para a pequena escala de processamento com exigência desproporcional em infraestrutura (construção, instalação e equipamentos) e fazia restrições quanto aos locais de comercialização. Fugia do enfoque sanitário. Está registrado em documento do GT”, lembra Prezoto.
A saída foi regulamentar o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (Suasa), criado em 1988 por alteração na Lei Agrícola no brasil, mas que estava na gaveta. Em março de 2006 foi publicado o decreto de regulamentação do sistema, com a finalidade de criar uma equivalência entre os selos federais, estaduais e municipais. Assim, um produto inspecionado em seu Estado ou Município de origem pode obter a equivalência em âmbito federal e fazer exportações.
“A ideia era superar as restrições que não servia para a pequena agroindústria e a produção artesanal. Muitas discussões ocorreram, mas os resultados são pífios. A questão central que é que a lógica é a mesma como se trabalhava na legislação anterior”, explica Prezoto. De acordo com o censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2006, 300 mil famílias responderam que possuem algum tipo de renda vindo do processamento, que pode ser feito em casa ou numa agroindústria. No entanto, depois de 11 anos de implantação do Suasa, apenas 8 ou 10 agroindústrias foram incluídas no sistema.
Diva Deitos, agroecologista, agricultora familiar e coordenadora da Associação dos Pequenos Produtores do Oeste Catarinense (Apaco), em Santa Catarina (SC), constata que a legislação brasileira não foi feita para os pequenos, como os artesanais e os coloniais, principalmente, quando os produtos são de origem animal, caso dos queijos e embutidos. “Os produtos foram sempre consumidos, são tradicionais e culturais, representam determinadas regiões e o seu modo de saber-fazer, mas estão sendo jogados na vala como se esses alimentos fossem a causa de tanta doença e morte”, informa Diva.
De acordo com a coordenadora da Apaco, o Suasa mantém os mesmos critérios de qualidade da lei da década de 50. Diva destaca que os produtores de pequena escala são submetidos a cumprir as mesmas normas de formalização, legalização, legislação, tributação e uma produção industrial, de grande escala. “É uma reserva de mercado para os estabelecimentos cadastrados no SIF”, conclui.
Diva comenta que o Suasa era uma expectativa para resolver o problema da segmentação da legislação, que exclui os pequenos. “Infelizmente, a corporação técnica do MAPA inviabilizou a aplicabilidade da lei ao apreender produtos com o SIE, comercializados fora do Estado de origem, sem considerar as equivalências. Os estabelecimentos de pequeno porte têm menos problemas de qualidade porque selecionam melhor a matéria-prima e adotam padrões de qualidade diferenciada dos processo técnicos industriais”, ressalta.
Prezoto concorda com a opinião de Diva ao salientar que “os profissionais da inspeção atuam com a mesma lógica, desde as escolas e das universidades que levam o profissional a realizar seu trabalho baseado apenas em critérios objetivos e técnicos, que o resguarda na avaliação. “Por exemplo, se tem o pé direito alto, então o produto tem qualidade”. Não se consideram os aspectos subjetivos, ou o contexto da produção”, justifica.
3. O contexto global e o risco da padronização alimentar
A cientista social e pesquisadora Bibi Cintrão aponta que os padrões internacionais de qualidade e sanidade dos alimentos, como o Codex Alimentarius, foram construídos tendo como referência a comercialização mundial de alimentos a grandes distâncias e em escalas. Bibi é autora da tese em sua tese “Segurança, qualidade e riscos: a regulação sanitária e os processos de (i)legalização dos queijos artesanais de leite cru em Minas Gerais”.
A partir dos anos 90 – num contexto de liberalização do comércio internacional, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de blocos econômicos como o Mercosul – os objetivos da vigilância sanitária sofrem fortes pressões e influência de interesses políticos, econômicos e ideológicos. Trata-se de uma possibilidade das normas serem utilizadas como barreiras econômicas disfarçadas. Nesse contexto, os países passam a ser pressionados para que suas legislações adotem os padrões internacionais e fortaleçam os sistemas de fiscalização sanitária. O não ajuste das legislações nacionais às regras internacionais (chamado de ‘harmonização’) pode se traduzir em acesso reduzido às exportações.
A formação dos profissionais especializados que trabalham na área de alimentos é direcionada para as necessidades da indústria global, na qual os riscos de uma contaminação são maiores e podem ter consequências de grande proporção. Esse cenário faz com que a legislação sanitária torne-se um elemento a mais na pressão para um processo de crescente padronização alimentar. No entanto, as legislações nacionais não apenas regulam as exportações, mas também os mercados locais e regionais de alimentos. Com isso, dificulta a comercialização legal de produtos produzidos em pequena escala.
Assim, os sistemas alimentares regionais diversificados dos países em desenvolvimento aparece como uma desvantagem daqueles que privilegiam as exportações e o comércio internacional. Da mesma forma, a presença de setores informais na produção e distribuição de produtos passa a ser visto pelos profissionais especializados (engenheiros de alimentos, veterinários, nutricionistas, agrônomos, microbiologistas, etc) como expondo os consumidores a um grande número de riscos potenciais quanto à segurança sanitária dos alimentos.
Esta visão é internalizada pelos órgãos e agências nacionais de controle sanitário, como se verifica no Brasil com os agentes administrativos responsáveis pela regulamentação e fiscalização dos produtos de origem animal no MAPA.
4. Quem dita as regras para assegurar a segurança alimentar e sanitária?
O Codex Alimentarius foi criado em 1963 com o lobby das indústrias alimentícias. É um conjunto de normas técnicas, procedimentos e práticas, concebido a partir da reunião de comissões de especialistas. A proposta é estabelecer padrões internacionais voltados para a segurança dos alimentos. O predecessor deste documento foi o Codex Alimentarius Austriacus, estabelecido em 1891 pela comissão comercial austríaca do Império austro-húngaro, que serviu de base para o atual código europeu.
O Codex é um programa gerido em conjunto com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), ambos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU). Dentre as funções estão elaborar e coordenar normas alimentares em âmbito internacional com a finalidade de proteger a saúde dos consumidores – o que é posto à prova com os frequentes casos de adulteração cometido pelas indústrias de processamento de produtos alimentícios. Também faz parte das metas assegurar práticas equitativas no comércio internacional de alimentos, mas está segmentado para os fabricantes de larga escala.
O jornalista norte-americano Paul Roberts, autor do livro O Fim dos Alimentos, analisa que desde os anos 70 os Estados Unidos da América (EUA) tornou-se o maior mercado de alimentos processados do mundo, o que atraiu o interesse de empresas europeias, como a Nestlé. A harmonização das normas facilitou o acesso a estes mercados, assim como os demais ao redor do globo.
Em sua pesquisa, Bibi explica que um dos princípios do Codex é que as normas, os códigos, os procedimento, as diretrizes e as recomendações devem se basear em “aspectos puramente científicos”. Este seria o critério para assegurar que as preocupações com a saúde estivessem acima dos interesses políticos e econômicos. Os países signatários, incluindo o Brasil, têm se comprometido a seguir estas normas sanitárias, para as quais a qualidade do produto é entendida como inocuidade. Isso traz algumas consequências, como a padronização do consumo e perda de cultura alimentar.
Os pesquisadores Vitor Toledo e Narciso Barrera-Bassols, afirmam que a modernidade raramente tolera outra tradição que não seja a sua. As formas modernas de uso dos recursos geralmente oprimem toda forma tradicional de manejo da natureza, incluindo os conhecimentos utilizados. Na mente dos produtores rurais (agricultores, pastores, pescadores, pecuaristas, caçadores e coletores) há um acúmulo de saberes que têm servido durante milênios para que a espécie humana se aproprie dos bens e serviços da natureza.
5. Uma rede de solidariedade e indignação
A notícia sobre a apreensão dos queijos e linguiças no Rock in Rio reverberou rapidamente nas redes sociais, nos jornais nacionais (Folha de São Paulo, Estadão/O Paladar, O Globo, Correio Braziliense, Diário de Pernambuco) e internacionais (Le Monde e Go Wine), além de sites (Nexo, G1 e IG) e artigos de opinião como o do chef Felipe Bronze, da procuradora de justiça Heloísa Carpena e do arquiteto e urbanista Washington Fajardo. As opiniões se dividiram entre a defesa da aplicação da lei e da produção artesanal, mas convergem ao apontar a urgência na revisão na lei sanitária.
Chefs, jornalistas e outros representantes da gastronomia brasileira – que estavam participando do XXII Congresso dos Restaurantes da Boa Lembrança, em Salvador (BA) no mesmo final de semana de setembro – gravaram um vídeo em defesa do produtor familiar, e em solidariedade à Roberta, lançando a hashtag #EuUsoArtesanal.
Outra manifestação veio do Fórum Nacional de Coordenadores e Professores dos cursos superiores de Gastronomia. Em uma Carta Aberta, propõe uma reflexão permanente sobre as normas sanitárias para a produção artesanal no âmbito educacional para a “formação de egressos conscientes da ética profissional e sustentabilidade existentes entre a terra e o fogão, de maneira que tais egressos desenvolvam a pertença de ingredientes e processos do legado cultural”.
O episódio chamou a atenção para a execução das leis arbitrárias, que regulam a produção artesanal, elo fundamental para enraizar as culturas alimentares regionais e dar visibilidade aos patrimônios bioculturais; dar acesso à população brasileira à comida de verdade, saudável e sustentável; e construir as bases da gastronomia brasileira com ingredientes de qualidade. Por isso, os cozinheiros buscam a excelência gastronômica, aproximando-se dos agricultores familiares, construindo relações comerciais em que a confiança é um componente fundamental.
6. A qualidade do artesanato culinário é a base da gastronomia brasileira
Roberta representa um expoente dessa caminhada de valorização do que chama de Nova Cozinha Brasileira. Há 25 anos, seu trabalho é reconhecido por demonstrar as possibilidades de sabor, técnicas e conhecimentos a partir dos alimentos tradicionais e populares dos brasileiros como banana, abóbora, chuchu e jiló. Em sua carreira, coleciona títulos e prêmios nacionais e internacionais, como de melhor chef da América Latina, concedido pela lista britânica The Fifty Best Restaurants.
No artigo assinado para a revista Veja, ela destaca que “preferiu-se ignorar a realidade e o desenvolvimento da gastronomia brasileira, tão rica, tão múltipla e diversa, na qual eu e tantos outros cozinheiros, produtores, agricultores e inúmeras outras pessoas temos trabalhado com muito custo e, às vezes, solitariamente para que nós brasileiros a conheçamos e tenhamos orgulho dela”.
Há 40 anos, a chef Teresa Corção, fundadora do Instituto Maniva, proprietária do restauranteO Navegador e conselheira do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) também faz da Agricultura Familiar e a produção artesanal a essência de sua cozinha. Em junho deste ano, ela foi uma das finalistas do Basque Culinary World Prize, considerado o prêmio Nobel para chefs, que promovem iniciativas transformadoras através da gastronomia. Seu cardápio é representado por uma cartografia de pequenos produtores de vários Estados brasileiros, com o nome e o contato dos produtores. Como ativista está empenhada em colaborar para criar mercados justos e sustentáveis entre produtores artesanais e o segmento gastronômico. O primeiro produto que incluiu nesse circuito foi a farinha d’água embalada no paneiro do Seu Bené, do município de Bragança, no Pará.
Para Teresa, no Brasil os alimentos de alta qualidade não são tão acessíveis. “Agricultores, pecuaristas e pescadores artesanais estão em vias de extinção por falta de mercado de seus produtos. Mercado esse determinado pela indústria alimentícia, aquela que pega a matéria-prima de baixa qualidade e transforma em produtos com longa vida de prateleira. Esta, por sua vez, é irmã gêmea da agroindústria que coloca toneladas de elementos químicos nocivos à saúde, muitas vezes já banidos em outros países, no plantio do que os brasileiros comem todos os dias”, afirma.
De acordo com ela, uma das razões e missões importantes da existência de chefs de cozinha é criar esse mercado trazendo os alimentos para seus negócios. “Criar escala para queijos, méis, ovos, frutas e o que mais existir de alta qualidade nesse nosso imenso e biodiverso país. Só assim esses alimentos poderão ter custo menor e estarem mais disponíveis à toda a população”, defende.
Raul Lody, antropólogo, museólogo e um pensador da comida brasileira, reforça que os produtos artesanais, seguidores de processos tradicionais são representantes patrimoniais dos nossos sistemas alimentares. “Este ocorrido no Rock in Rio mostra os limites e conceitos que necessitam ser entendidos em políticas públicas sobre comida e cultura. Creio que muito encontros e ‘afinações’ com estes representantes da ‘sanidade oficial’ necessitem de uma maior abertura e atualidade porque são apenas ‘aplicadores’ de regras’”, sugere.
7. O que é qualidade e risco? Um debate de muitas vozes
O debate sobre normas sanitárias mais inclusivas e adequadas à lógica e dinâmicas da produção familiar e artesanal faz parte da pauta de lutas políticas de movimentos sociais camponeses, feministas, as agroindústrias familiares e organizações sociais e científicas, como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Slow Food e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
Vanessa Schottz, membro da Coordenação Executiva do FBSSAN comenta que a apreensão de uma chef de prestígio em um evento de alcance mundial ajuda a jogar luz para um problema que vem sendo pautado no campo social e acadêmico. “O controle sanitário é excludente e se estrutura numa lógica de processamento de produtos industrializados, que é diferente da lógica da produção familiar”, explica.
Na carta política do VII Encontro do Fórum, realizado em 2013 na cidade de Porto Alegre (RS), consta uma referência às normas sanitárias inclusivas. “Sustentamos ser possível e necessário adotar uma concepção de qualidade baseada no respeito às práticas e culturas alimentares tradicionais, ao mesmo tempo em que se fornecem alimentos adequados e saudáveis à população com normativas mais inclusivas”.
Vanessa ressalta que essa inadequação do código sanitário às práticas culturais coloca na ilegalidade muitas agroindústrias, que produzem com alimentos da nossa sociobiodiversidade, com valor cultural e nutricional. “Algumas experiências de adequação aos padrões industriais não foram bem sucedidas por sacrificar características principais da artesanalidade, do modo de saber-fazer, da identidade com o território. É o caso de alguns queijos mineiros e produtos coloniais de Santa Catarina”, destaca.
A também professora de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-Macaé) chama a atenção para a necessidade de discutir o conceito de qualidade e risco, construídos socialmente em função de um sistema alimentar hegemônico em larga escala, baseado no Codex. “Existem outros atributos que precisamos considerar como o sabor e a relação de confiança com o produtor”, completa. De acordo com ela, o debate não tem como finalidade flexibilizar o código sanitário, mas sim rediscutir os conceitos que norteiam essa regulamentação ao excluir as relações com o território, a cultura, a diversidade e a identidade cultural. “É preciso que a lei se adeque a esse perfil de produtos, considerando as diferenças na dinâmica de funcionamento, a escala menor de produção”, justifica.
Vanessa ressalta que os parâmetros sanitários, em última análise, acabam conflitando com o Guia Alimentar para a População Brasileira que classifica os alimentos conforme o grau de processamento em três estágios: (1) natural ou minimamente processado, (2) processado e (3) ultraprocessado. A recomendação do guia é para evitar os ultraprocessados, como os embutidos e queijos industrializados que contém gordura vegetal hidrogenada, amido modificado, emulsificantes, realçadores de sabor e corantes, por exemplo. No entanto, esses produtos são considerados seguros do ponto de vista estritamente sanitário. Gozam de liberdade para cruzar estados e fronteiras internacionais.
8. Anvisa e o diálogo com a sociedade civil
Em 2012, a Anvisa lançou o projeto Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária. Um dos desdobramentos da articulação com a sociedade civil foi a publicação da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 49, em 2013. Esta RDC trata sobre a Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária. É destinada à regulamentação sanitária de microempreendedores individuais (MEI), empreendimentos familiares rurais e empreendimentos da Economia Solidária. Antes da publicação, a proposta passou por consulta pública e também por discussões em seminários regionais, que envolveram mais de 6 mil participantes de cerca de 150 instituições diferentes, segundo dados da ANVISA.
A RDC busca conciliar os princípios de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e com uma visão mais ampliada de saúde. Propõe-se a preservar a caracteristica artesanal dos alimentos, e a priorizar uma fiscalização voltada mais para a orientação do que para punição. Busca, ainda, promover a integração dos processos e dados do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) com os demais órgãos e entidades. O objetivo é evitar a duplicidade de exigências para os empreendimentos.
A publicação da RDC, sem dúvida, foi uma importante conquista, mas agora o desafio é a sua efetiva implementação. Bibi destaca que a RDC não regula produtos de origem animal nem as bebidas, pois para esses produtos a competência é do MAPA. “Vale apenas para os produtos regulados pela ANVISA, que envolve todos os demais alimentos processados, como farinhas, doces, geleias, conservas, massas etc”. Além do processamento, a cientista social comenta que as normas sanitárias interditam também instrumentos feitos de madeiras (como colheres e tábuas), panelas de barro, tachos de cobre e embalagens naturais.
Em 2014, a Campanha Comida é Patrimônio, realizada pelo FBSSAN tem dado visibilidade à questão ao apoiar o Manifesto da Colher de Pau, lançado por Lody. O artigo que apresenta o manifesto exalta os aspectos positivos da resolução ao olhar para a produção artesanal, mas também acentua os pontos a serem enfrentados. No mesmo ano, 72 organizações da sociedade civil lançaram uma Carta Aberta para alertar que as normas para a produção e processamento de produtos de origem animal e polpas de frutas permanecem excludentes e inadequadas. O documento também relata a dificuldade de diálogo com o MAPA.
9. 4 anos depois: um olhar sobre a RDC 49
Rosilene Mendes, que hoje se apresenta como uma cidadã brasileira, foi assessora da Diretoria do SNVSA na Anvisa e coordenou o Projeto Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária. Ela atuou na construção da RDC 49 e intermediou algumas negociações com o MAPA. Rosilene lamenta o episódio do Rock in Rio, pois demonstra “a falta de capacitação dos fiscais e desconhecimento da resolução”. De 2013 a 2016, Rosilene conta que viajou por todo o Brasil para divulgar a RDC nas Vigilâncias Sanitárias municipais e estaduais, articulando parcerias.
“A recomendação é para uma fiscalização orientadora. Se houver indícios de adulteração, o produto deve ser analisado em laboratório e, havendo risco comprovado, o produtor deve ser responsabilizado. Faltou aplicar o princípio de razoabilidade. Os técnicos não devem se basear apenas na rotulagem. Grandes redes andam falsificando rótulos. Esse tipo de atitude faz parte de um pensamento sanitarista atrasado e higienista que prefere jogar o alimento bom no lixo”, comenta.
Para enfrentar o problema, ela defende a revisão de uma outra resolução, a RDC 216 (15/09/2004) que trata sobre a produção, fabricação e manuseio dos alimentos para os serviços de alimentação. Rosilene reforça a necessidade de dar tratamento diferenciado para os produtos artesanais e produção de baixa escala da Agricultura Familiar, MEI e Economia Solidária. “Se não for feita uma revisão desta norma continuaremos tendo problemas com as vigilâncias sanitárias em todos os âmbitos”, aponta.
10. Quais nos esforços para implementação da inclusão produtiva?
Em 2016, foi criada na Anvisa a Coordenação de Articulação Social e Cidadania (Coaci), atendendo à solicitação de uma carta aberta que demandava a continuidade das ações do projeto Inclusão Produtiva com Segurança Sanitária. Este programa ganhou abrangência nacional dentro do SNVS. Para isso, foi criado um Grupo Técnico, formado por órgãos de governo e entidades civis representativas dos pequenos produtores familiares.
Edson Donagema, coordenador da Coaci, explica que o trabalho vem sendo desenvolvido com a qualificação dos serviços de Visa estaduais e municipais para a aplicação da RDC 49 para a atuação junto aos pequenos negócios. A Anvisa também busca simplificar a regularização das atividades de baixo risco. Isto significa desburocratizar o processo de abertura das empresas, sem contudo abrir mão do controle dos riscos sanitários associados às atividades de interesse da Visa.
Segundo o coordenador uma estratégia importante é a implementação do Programa de Inclusão
Produtiva com Segurança Sanitária (PRAISSAN) nos Estados, implantando comitês com ampla participação de produtores e consumidores. O Praissan foi criado em março de 2017. Uma das competências do é fortalecer o diálogo com o MAPA – que confere o SIF – e a Anvisa, pois ambos os órgãos atuam na regulação de produtos da Agricultura Familiar.
No entanto, há entendimentos contraditórios na interpretação da lei. Esse desajuste cria dificuldades e impedimentos para esse público acessar os mercados nacionais. Para além das diferentes leituras da legislação, Edson pontua que “só avançaremos quando conseguirmos articular fomento, extensão rural e fiscalização num esforço para propiciar uma regulamentação equilibrada, amparada na constante melhoria da qualidade sanitária dos produtos destes empreendedores”.
Juliana Casemiro, membro da secretaria executiva do FBSSAN e docente do Instituto de Nutrição da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) informa que com a criação do PRAISSAN abre-se a possibilidade de destinar recursos financeiros e técnicos voltados para a formação das Visas locais no sentido de popularizar a RDC 49 e o próprio Praissan – o que é sem dúvida uma iniciativa de grande relevância”.
Contudo, Juliana adverte que deve-se partir da construção de uma nova racionalidade para alinhar as demandas das normas sanitárias sem ameaçar a biodiversidade e a continuidade das culturas alimentares. “Que seja capaz de incluir novos saberes e faça criar maneiras mais sensíveis e éticas de lidar com a diversidade da produção familiar e artesanal. Afinal, qual a habilidade mais necessária neste momento: fiscalizar, punir ou orientar? Trata-se também de repensar, redimensionar e avaliar o que de fato está em jogo na disputa de sentidos de termos como qualidade e risco”, pondera.
Neste momento, Juliana anuncia que está em processo a formação do Comitê do Praissan em nível nacional para atuação junto à ANVISA. “Um importante limite é reconhecer que não estamos falando de farinha, compota ou queijo. Estamos tratando de “farinhas”, “compotas”, “queijos” – com toda a diversidade, riqueza e complexidade que só pensando no plural teremos a possibilidade de iniciar as reflexões necessárias”.
Outra importante questão ressaltada pela pesquisadora é que “falar pelos” produtores é inadequado, não é suficiente. “Eles precisam ter participação mais efetiva nesta construção. Vem daí a importância não apenas de se pensar a composição do Comitê na Anvisa, mas sobretudo dos Comitês no PRAISSAN nos Estados e municípios. Este espaço será um dos suportes para o diálogo com as Visas locais porque são estas que estão em estreito contato e cotidiano convívio com a diversidade da produção familiar e artesanal”, completa.
Segundo o coordenador da Coaci, “o que ocorreu no Rio mostra que precisamos avançar nacionalmente em uma normatização adequada à pequena produção familiar ou dos pequenos empreendimentos. É preciso valorizar a produção artesanal, ao mesmo tempo em que se deve reconhecer que os riscos sanitários existem e devem nortear a atuação dos órgãos públicos de fiscalização sanitária, bem como a busca da qualificação do pequeno produtor”. Edson destaca que os Estados têm dado passos significativos, como é o caso do Paraná, que publicou norma para a Agricultura familiar, construída através de processo participativo. E de Minas Gerais, que tem um bom diálogo com entidades representativas de pequenos produtores.
11. Outros esforços para abrir o caminho para a produção artesanal
A Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (Sead) continua empenhada implementar o Suasa por meio da publicação de decretos e Instruções Normativas, entre os anos de 2015 e 2017. “A proposta é trabalhar nas exigências mínimas e desamarrando os nós. O esforço é para que essas legislações sirvam de referência para que os municípios e técnicos façam as adesões ao sistema unificado.”, esclarece Prezoto Prezoto, salientando que o Suasa não é um novo serviço de inspeção.
Já há um decreto de 2010 que orienta os municípios estabelecerem suas próprias regras, mais simples adequadas para a pequena indústria. É preciso comprovar que tem estrutura para fazer o serviço, carros, técnicos, local de inspeção e a própria legislação. “Mas a lógica permanece a mesma e há uma pressão para que se coloque as mesmas regras da lei federal, cuja prioridade é a produção em larga escala. Deve-se, ao contrário, demonstrar que o município pode ter sua legislação adequada a pequena indústria. O que não pode é ter insegurança sanitária”, pontua o consultor.
Diante desse descompasso, Prezoto concorda com a agroecologista Diva de que há uma disputa de mercado e não há políticas públicas adequadas a cada público. Impera uma lógica cartorial, onde vale o papel e o carimbo e as estruturas, sobrepondo-se ao alimento e à saúde. “Há uma confusão de conceitos entre escala de produção e quantidade, como também apontou Vanessa, membro da coordenação do Fórum.
Bibi também está de acordo com a posição colocada por Prezoto, Diva e Vanessa. Ela acrescenta que a legislação nacional de produtos de origem animal é feita pelo MAPA. E como o Brasil é um grande exportador de carnes, há uma forte pressão pela “harmonização” com os padrões internacionais e os Estados e municípios têm pouca autonomia para fazerem suas regulamentações.
De acordo com o sociólogo espanhol Manuell Castells, nossa sociedade está organizada em rede, onde o poder é exercido não pela exclusão das redes, e sim pela imposição das regras de inclusão. Castells sinaliza que pode existir um nível de abertura da rede, onde essas regras podem ser negociadas entre seus componentes. Uma vez que as regras forem estabelecidas, elas passam a ser obrigatórias para todos os nós na rede, já que o respeito a essas regras é o que possibilita a existência da rede como uma estrutura comunicativa.
Ao transpor esta reflexão ao sistema alimentar hegemônico podemos visualizá-lo como uma rede, onde as regras impostas pelo Codex Alimentarius, são agora obrigatórias e tende prevalecer o modelo agroindustrial moderno, baseado majoritariamente no conhecimento científico-tecnológico. Encontramos, assim, instituições cumpridoras da lei, em que não se consideram aspectos subjetivos, e um “Estado cumpridor da lei do mercado que exige harmonização”.
12. Ocupe a cultura alimentar
Bibi Cintrão, também membro do Slow Food, comenta que o movimento surgiu tendo como uma das principais bandeiras a defesa da biodiversidade e da produção artesanal de alimentos, contra esta padronização industrial. “O Slow Food tem uma presença grande na gastronomia, pois denuncia que além de todas as consequências sociais, econômicas e ambientais negativas da crescente concentração da produção em gigantes agroalimentares, estamos tendo também uma perda de sabores e de referências culturais associadas à comida”.
Ela chama atenção para o fato de que atitudes como a da Roberta não são isoladas: são compartilhadas por outros chefs, inclusive da alta gastronomia, que buscam valorizar a diversidade de nossa cultura alimentar e têm assumido o risco de “desobedecer” às regras sanitárias, utilizando seu prestígio e reconhecimento público. Vários deles conhecem a origem dos seus ingredientes e, às vezes, até os produtores e suas dificuldades”. Também há espaços de comercialização onde se busca valorizar estes produtos como as feiras orgânicas, agroecológicas e circuitos curtos.
Outra forma de resistência é a popular, muitas vezes invisível, que se traduz em vários mecanismos informais de acesso a alimentos que não têm certificação sanitária. “Tudo isso vem garantindo a sobrevivência de uma cultura alimentar mais diversa, menos padronizada e menos industrializada e permitindo que os saberes associados a estas produções continuem a ser transmitidos”, comenta Bibi.
A apreensão dos 160 quilos de queijos e linguiças no estand da chef faz parte de uma triste estatística, que vem acontecendo em feiras do Nordeste (como a destruição de ovos caipiras) ou pequenas lojas de produtos coloniais no sul do país, o que Maria Emília Pacheco, membro da coordenação do Fórum, chama de criminalização da cultura alimentar. Toneladas de queijos artesanais ou de pequenas indústrias, sem registro sanitário, são frequentemente destruídas nas estradas por esse Brasil afora, em geral com bastante violência e desrespeito pelos produtores, conforme relata Bibi.
Solidariedade, redes de resistência e desobediência são opções que permitem apoiar a cultura alimentar. Encontram-se nas bordas, no limiar, se apresentam como linhas de fuga, numa zona fronteiriça, no cruzamento. Trazem afetos, compartilhamentos e novas composições possíveis graças a confiança não capturada pelas leis do mercado.
Para os filósofos franceses Deleuze e Guattari, as dimensões macro e micropolíticas estão permanentemente entrelaçadas e devem se articular. Assim, permite-se a construção da agenda política por meio dos movimentos sociais, de massas, de espectro micropolítico, passando pelas negociações e pressões no contexto da Assembleia Nacional Constituinte até a sua formalização no texto macropolítico na forma de lei.
A partir dos depoimentos dos entrevistados sobre a relação entre cultura alimentar e normas sanitárias encontramos um campo de luta articulado há alguns anos, onde seu busca, conjuntamente, soluções políticas dentro das instituições, sem deixar de pressionar por fora.
Ao se falar sobre a comida e o patrimônio alimentar que podemos levar para o nosso prato, todos podemos encampar essa luta. Esta é a convocação da campanha Comida é Patrimônio: #OcupeACulturaAlimentar.