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Rede Brasileira de Pesquisa em SSAN

Por Renato Maluf*

Está por se concretizar uma iniciativa voltada para promover as pesquisas acadêmicas do campo da alimentação e nutrição (A&N), agricultura e das ciências sociais e humanas, que adotam uma perspectiva intersetorial, portanto interdisciplinar, dedicam especial atenção às políticas públicas, dialogam com as organizações e os movimentos sociais e reconhecem diferentes modos de produção de conhecimento. Essa é a premissa que orienta a construção da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (RBPSSAN), em pleno curso desde 2012, cuja constituição oficial será aprovada durante o III Encontro Nacional de Pesquisa, reunindo centenas de pesquisadores, de 08 a 10 de Novembro de 2017, no campus da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba (PR).

A emergência dessa rede é parte da construção do que se poderia denominar de ‘campo sócio-político’ da soberania e da segurança alimentar e nutricional (SSAN) no Brasil iniciada em fins da década de 1980, junto com a redemocratização do País, reunindo organizações sociais, gestores públicos e acadêmicos e que resultou em significativas repercussões nas políticas públicas a partir de 2003. Encontram-se nesse processo as raízes da perspectiva atual de construir um referencial que se diferencie do paradigma dominante das pesquisas disciplinares, cuja contribuição não contempla adequadamente fenômenos multidimensionais como a fome e a má nutrição, ou a promoção da alimentação adequada e saudável, oriunda de uma agricultura de base familiar, diversificada, sustentável e orientada por princípios agroecológicos. Uma pesquisa que, acima de tudo, gere conhecimento para incidir na realidade e nas políticas públicas tendo como horizonte a equidade, a justiça e a realização do Direito Humano à Alimentação adequada. Há indicadores que demonstram o grande crescimento no número dos grupos de pesquisa trabalhando sobre a temática da SSAN e do DHAA, em universidades e instituições de pesquisa por todo o País, em paralelo ao ingresso, com destaque, da fome e da alimentação adequada e saudável na agenda pública do Brasil nos anos 2000.

A partir de iniciativa de pesquisadores(as) participantes do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), esse crescimento ganha visibilidade e, ao mesmo tempo, evidencia-se a carência tanto de espaços de interlocução entre pesquisadoras(es) que adotam a perspectiva aqui destacada, quanto de apoio institucional (das agências de fomento) capaz de abrigar uma abordagem interdisciplinar. Assim, a construção da rede de pesquisa resulta do comprometimento de um conjunto expressivo de profissionais com a prática de uma ciência cidadã, que produz conhecimento acadêmico ao mesmo tempo em que valoriza outras formas de produção de conhecimento, promovendo a definição de prioridades em diálogo com as agendas das organizações sociais e as políticas públicas, sem prejuízo da autonomia acadêmica, e constrói métodos de pesquisa adequados sem desconsiderar o rigor requerido.

Essa concepção de pesquisa está expressa nos seis princípios que orientarão a atuação da rede, a saber:
I. Conhecimento acadêmico interdisciplinar e multiprofissional, respeitando as diversas formas de geração de conhecimento e a diversidade metodológica.
II. Pesquisa cidadã comprometida com a superação da fome e a promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional.
III. Independência e autonomia em relação a governos, partidos políticos, organismos nacionais e internacionais e interesses privados.
IV. Compromisso permanente com a redução das desigualdades e a promoção da equidade de gênero, étnico-racial e geracional.
V. Defesa da qualidade dos alimentos e da alimentação adequada e saudável que respeite as circunstâncias socioambientais e as culturas.
VI. Geração de conhecimento que contribua com as políticas públicas e posicionamento no cenário nacional e internacional livre de conflitos de interesse. Igualmente, as diretrizes de ação da rede visam a promover, entre outros: (a) cooperação entre pesquisadores(as) nacionais e internacionais; (b) diversidade metodológica; (c) característica multi, inter e trans-disciplinar na produção do conhecimento; (d) conhecimento voltado para novas formas de ensino e extensão; (e) troca de saberes com organizações, movimentos e grupos sociais; (f) diversidade profissional, institucional, regional, de gênero, geracional, cultural e étnico-racial; (g) estratégias de divulgação da produção científica e disseminação de conhecimento no âmbito acadêmico e na sociedade; (h) interação entre conhecimento, política e ação; (i) ações, financiamento e parcerias livres de conflito de interesses.

Pode-se afirmar que muito já se avançou na produção acadêmica no Brasil com a abordagem aqui proposta, constituindo base sólida para a rede em construção. Isto se nota no volume e na qualidade dos trabalhos acadêmicos ensaísticos ou que analisam dinâmicas socioeconômicas e políticas, nos diagnósticos que fundamentam ações e políticas públicas e na construção de matrizes de indicadores.

O III Encontro Nacional será palco da apresentação de mais de 300 trabalhos de pesquisadores e estudantes de todas as regiões brasileiras. A longa lista de temas que vêm sendo tratados inclui, entre outros, as várias formas de agricultura de base familiar e diversificada e sua interação com o acesso a uma alimentação saudável igualmente diversificada;significados e requisitos para a adoção do enfoque agroecológico, estratégias soberanas de abastecimento alimentar;fatores determinantes do sobrepeso e da obesidade;carências nutricionais e sua relação com restrições de acesso e hábitos de consumo;educação alimentar e nutricional respeitando a diversidade sociocultural dos grupos populacionais;políticas públicas intersetoriais e participativas.

É fácil constatar que essa iniciativa confronta com uma capacidade de pesquisa bem estabelecida, hegemônica em muitos setores, que não apenas reflete a antiga tradição disciplinar como, mais grave, termina por promover padrões de produção, distribuição e consumo de alimentos que estão na origem da elevada desigualdade social que caracteriza o Brasil, danos ambientais e agressões ao patrimônio cultural e genético, e a reprodução de tendências mundiais de má alimentação.

Os exemplos mais notórios são a afiliação a modelos produtivistas na agricultura em coordenação com a indústria de sementes e de máquinas, a fundamentação dita ‘científica’ de tecnologias no mínimo controversas, como a dos organismos geneticamente modificados, o desenvolvimento de abordagens que dissipam a heterogeneidade social e a diversidade étnico-cultural no meio rural e a apropriação da agenda de A&N por enfoques funcionalistas sobrepostos a considerações éticas e culturais.

Assentadas em legitimidade científica, conferida pelo próprio universo acadêmico, em ambiente de crítica permanente de seus marcos conceituais e analíticos, tais pesquisas são objeto de apoio prioritário de governos, da iniciativa privada e organismos internacionais. Não são poucos os casos em que essa interação envolve conflitos de interesse que extrapolam para o âmbito das relações público-privado, em iniciativas com ampla incidência social.

A criação da rede de pesquisa é, sem dúvida, uma iniciativa promissora ao vir em reforço de um campo de pesquisa que demanda visibilidade e legitimidade, tanto na academia quanto no conjunto da sociedade. A opção por praticar uma ciência cidadã comprometida com a erradicação da fome e a garantia de uma alimentação adequada e saudável, com o enfrentamento de toda sorte de desigualdade, e com modelos de produção e consumo diversos e sustentáveis, deve ser permanentemente reafirmada, por meio do debate aberto e da cooperação entre os que a praticam e também com aqueles para os quais ela está voltada.

Não são poucos os desafios conceituais e metodológicos, muitos deles registrados nos anais dos encontros promovidos pela rede em construção . As estruturas curriculares do ensino de graduação e, particularmente, de pós-graduação vêm sendo desafiadas a abrigar o tipo de reflexão e atividade de pesquisa com as características e os conteúdos aqui ressaltados. Por fim, mas não menos importante, há carência de apoio institucional adequado, por meio de agências de fomento e financiamento que acolham projetos interdisciplinares ou assentados na diversidade étnico-cultural e de saberes.

Os tempos de desconstrução que estamos vivendo, desde o golpe parlamentar praticado em 2016, têm se manifestado de forma igualmente dura no meio acadêmico. Não se trata apenas do corte de recursos públicos, mas também de ataques diretos à liberdade de pensamento e expressão. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional irá se somar aos demais instrumentos de resistência aos retrocessos que vêm sendo erigidos em todo o País.

Renato Maluf é professor Titular do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), Coordenador do Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CERESAN), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; membro da coordenação do FBSSAN; conselheiro (2003-2016) e Presidente (2007-2011) do CONSEA.

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