O alimento que a terra produz é um bem comum a ser preservado. Os modos de produzir, viver e comer vão, aos poucos, ao ritmo do vai e vém de uma farinhada, construindo nosso paladar. A comida de verdade, aquela preparada por pessoas de verdade, é um patrimônio cultural, tanto material – por seu aspecto físico, palpável e “degustável” -, quanto imaterial, pelo simbolismo que representa na história e no cotidiano.
Crescemos com um repertório de gestos, saberes e sabores que são armazenados na memória. Esses conhecimentos culinários formam, desde a infância, a base de nosso material cultural, como aponta o antropólogo norte-americano Sidney Mintz. Segundo esse autor, a “bagagem gustativa”, acumulada ao longo da vida, nutre o comportamento alimentar, e nos liga diretamente à nossa identidade e ao sentido de nós mesmos.
A escritora carioca Heloísa Seixas, ao escrever sobre as memórias culinárias de sua mãe, conclui que não há muita diferença entre deixar como legado um registro artístico, um grande feito científico, uma escultura gigantesca que paire sobre uma cidade, ou um livro de receitas – desde que sejam capazes de, no futuro, comover pessoas. Esse olhar para os valores culturais e simbólicos, implícitos no ato de comer, levou a criação de instrumentos legais para valorizar a manutenção de certos modos de vida. Saberes, celebrações, formas de expressão, lugares passaram ser considerados tão importantes quanto a arquitetura das cidades, patrimônios de pedra e cal. É o que explica a historiadora Ana Cláudia Lima e Alves, especialista em Preservação Cultural. Desde 2000, o Brasil possui o Registro de Bens Culturais de Natureza Material e Imaterial (decreto nº 3.551), concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional (IPHAN). “É uma rede de fatos, relações que fazem a vida das pessoas. A comida é uma expressão da cultura. As panelas, o fogão e a cozinha coletiva são, antes de tudo, bens culturais”, destaca Ana.
De acordo com a historiadora, essas expressões culturais são também representativas da diversidade étnica e da formação do Brasil, e cabe ao poder público reconhecê-las, valorizá-las, promovê-las, com a colaboração da sociedade. Assim, ela considera que iniciativas como a campanha Comida é Patrimônio, lançada pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN), são desejáveis e convergentes, pois “o registro é um instrumento importante, mas precisa ser melhor apropriado pela sociedade”. Segundo Ana, os bens registrados são amparados por uma política de salvaguarda do IPHAN que deve ser integrada com outras políticas públicas, como na área de Saúde, Educação, incluindo a atuação de Estados e municípios.
Na lista de patrimônios, constam o Ofício das baianas de Acarajé, na Bahia;o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, bairro de Vitória no Espírito Santo; a Feira de Caruaru, em Recife, Pernambuco; o Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas Regiões do Serro, da Serra da Canastra e do Salitre, em Minas Gerais; o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, na Amazônia; e a Produção Tradicional e Práticas Socioculturais Associadas à Cajuína no Piauí. Estes são bens de natureza dinâmica, frutos de processos históricos de construção de sociabilidades, formas de sobrevivência, de apropriação de recursos naturais e de relacionamento com o meio ambiente, conforme esclarece a pesquisadora.
“A culinária e a gastronomia, das formas mais simples às mais elaboradas, são parte da vida e da identidade cultural dos diferentes grupos sociais. No âmbito da política de preservação do Patrimônio Cultural e Imaterial, trata-se de reconhecer essas expressões como elemento constitutivo de redes de relações socioculturais em feiras e mercados, nos espaços de sociabilidade e redes de sentido das celebrações”, destaca. Assim, o registro consiste na produção de conhecimentos e documentação de todos os aspectos culturalmente relevantes da manifestação que se quer preservar. “Ninguém ama e preserva o que não conhece”, aponta Ana.
Salvaguarda de bens culturais
A ideia de comida como patrimônio começou a ser propagada a partir de 1989, com a Recomendação sobre Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, durante a 25ª reunião da Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). A orientação foi dada aos países-membros, incluindo o Brasil, com o intuito de salvaguardar as manifestações culturais, caso das cozinhas regionais. No ano de 1996, é lançado, em Cuba, o projeto Turismo Cultural na América Latina e Caribe. O propósito era incentivar a urgência de desenvolver e aprofundar a reflexão sobre o patrimônio gastronômico regional, e destacar as receitas de cozinha como um bem cultural tão valioso quanto um monumento. Em 2003, foi promulgada a Convenção para a Salvaguarda de Patrimônio Imaterial.
O governo brasileiro ratificou essa convenção por meio do decreto nº 5.753, em abril de 2006, o qual define patrimônio imaterial como “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”.
Em âmbito internacional, desde 2010, a cozinha tradicional mexicana, a gastronomia francesa e a dieta mediterrânea – que engloba o sistema culinário da Espanha, Marrocos, Grécia e Itália – passaram a integrar a lista representativa de Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO. O antropólogo carioca Raul Lody, que coordenou o projeto para solicitar o registro do ofício das baianas de acarajé (o primeiro no Brasil, em 2005), assegura que o foco da salvaguarda no instrumento legal por parte do Estado é, sem dúvida, a mais importante missão. É além da “diplomação” desses bens, pois toca em aspectos ideológicos, do direito cultural, da auto-estima, da cidadania, da democracia, entre outros muitos valores estimados em contextos globalizados. Em sua opinião, é uma legitimação de que comida é povo. Além da baiana, temos a tacacazeira (vendedora de tacacá), a tapioqueira (vendedora de tapioca), que representam o comer da rua, também marcado por territórios e representações.
Outras formas de salvaguardar o patrimônio alimentar
A chancela de Paisagem Cultural brasileira também é concedida pelo IPHAN (Portaria nº 127) desde 2009. Trata-se de um instrumento criado para promover a preservação ampla e territorial de porções singulares do país. O sertanejo e a caatinga; o candango e o cerrado; o boiadeiro e o pantanal; o gaúcho e os pampas; o pescador e os contextos navais tradicionais; o seringueiro e a floresta amazônica são exemplos desse cenário integrado entre homem e natureza. Esse conceito já é utilizado na Espanha, no México e na França.
Outras formas de patrimonialização de bens, surgiram na esfera privada. A Indicação Geográfica (IG) é outro instrumento de valorização do território, mas que segundo a historiadora Ana, guarda fortes relações com o mercado. O registro e certificado são concedidos pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Existem dois tipos de IG: Indicação de Procedência (IP) e Denominação de Origem (DO). Assim, o Café do Cerrado Mineiro (MG); os vinhos do Vale dos Vinhedos (RS); e os camarões da Costa Negra (CE) possuem DO devido às suas singularidades geográficas, incluindo os fatores naturais e humanos. São reconhecidos com o IP as cachaças de Paraty (RJ); o melão de Mossoró (RN); e o cacau em amêndoas de Linhares (ES), por serem centros de produção desses produtos e alimentos.
Ana faz uma crítica a esse modelo por considerá-lo um processo excludente, que não valoriza o pequeno produtor. É voltado para um grupo restrito de produtores que estabelece padrões de qualidade, inviabilizando o acesso, seja por questões ligadas ao investimento financeiro e a interferência em aspectos culturais para se adaptar às exigências mercadológicas. O IG segue a linha de países como a França, que possui a Apelação de Origem Controlada (AOC); e Itália, com a Denominação de Origem Controlada (DOC), cuja finalidade é proteger comercialmente a exclusividade de produção de bebidas, como vinhos e espumantes. O nome Champagne, por exemplo, só pode ser utilizado pelas bebidas produzidas nessa região francesa.
Além das políticas públicas e da iniciativa de mercado, os movimentos sociais encampam bens para preservação. A associação Slow Food, presente no país desde 2000, possui um catálogo internacional chamado Arca do Gosto. O objetivo é documentar e divulgar alimentos que estão em risco de desaparecer. No Brasil, já foram catalogados 28 alimentos tradicionais que devem ser preservados. Entre eles, estão o arroz vermelho do Vale do Piancó, na Paraíba; a cagaita do Caxambu, em Pirenópolis (GO); a bijajica (bolo cozido no vapor com massa de mandioca, amendoim e açúcar), do litoral de Santa Catarina; e o néctar das abelhas nativas dos índios Sateré-Mawé, no Amazonas.
No Mato Grosso, a Associação Regional das Produtoras Extrativistas do Pantanal ( ARPEP) reúne 30 mulheres agroextrativistas de três assentamentos rurais e uma comunidade tradicional nos municípios de Cáceres e Mirassol D’Oeste, localizados na região de transição do Cerrado matogrossense com o Pantanal, ao sudoeste do Estado. Essas mulheres fazem o aproveitamento e o beneficiamento de frutos abundantes na região, como o pequi, babaçu e o cumbaru, que são comercializados pela associação, com apoio e assessoria da ONG Fase, que atua com assistência social e educação há mais de 25 anos no Estado. De acordo com Francileia Paula, engenheira agrônoma e técnica da ONG, “o agroextrativismo é uma das práticas promotoras do DHAA, na medida em que contribui com o resgate da cultura alimentar regional/local e vincula a produção de alimentos ao território e às relações sociais que nele se estabelecem”.
Na agricultura brasileira, as mulheres também são defensoras da cultura alimentar local e regional. As mãos que lavram a terra, insistindo nos frutos nativos, são as mesmas que transformam a colheita em doces, geleias, compotas e uma diversidade de preparações culinárias, tão enraizadas quanto o próprio alimento cultivado. Da terra à mesa, elas preservam o gosto do lugar por meio do paladar. Tais iniciativas reforçam a necessidade de valorizar, proteger, preservar, compartilhar os sabores regionais do país, como estratégia para fortalecer a identidade cultural frente às ameaças impostas pela homogeneização e simplificação do gosto, com hábitos construídos nas agências de marketing das indústrias alimentícias.
Em defesa do folclore brasileiro
O movimento folclórico internacional, ocorrido entre os anos 40 a 60, empreendeu pesquisas etnográficas sobre temas como dança, música, teatro, artesanato e comida, em permanente integração com a UNESCO. Sob esta influência, em 1958 o governo lançou a Campanha em Defesa do Folclore Brasileiro, com a finalidade de realizar ações por parte do Estado em prol da causa popular. Antes dessas ações, projetos e decretos de lei, o sociólogo Gilberto Freyre lançou o Manifesto Regionalista, em 1926, onde exalta o valor das tradições culinárias familiares, indicando a salvaguarda desses bens: “Que todos quantos possuírem em casa cadernos ou manuscritos antigos de receitas de doces, bolos, guisados, assados, etc, cooperem para a reunião dessa riqueza, hoje, dispersa em manuscritos de família, esforço de que o Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste tomará a iniciativa, nomeando uma comissão para a colheita de material tão precioso e digno de publicação”. O autor também convocou seus leitores da revista o Cruzeiro para elaborar um mapa culinário do Brasil, em artigo publicado em 24 de novembro de 1951.
Outro esforço em preservar nossos costumes populares foi feito pelo folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo, em 1963, ao publicar a obra “História da Alimentação no Brasil”. Os folcloristas foram pioneiros em localizar a comida na dimensão cultural e simbólica, enaltecendo sua relevância na cultura popular. Antes de Cascudo, destaca-se Sílvio Romero e Eduardo Frieiro, escritores que se dedicaram a temas do folclore nacional.
Comer é universal e comum
A antropóloga gaúcha Renata Menashe destaca que a comida enseja o partilhar, o comer junto. Ela recorda que a etimologia da palavra companheiro remonta à expressão cum panis, referente ao ato de partir o pão. Assim, a comensalidade, realizada pelo compartilhar a comida, alimenta a sociabilidade, indicando as múltiplas formas do comer e a diversidade cultural existente nas sociedades.
Retomando as ideias de Mintz, ao afirmar que a identidade é relacional, por “se ligar ao sentido de nós mesmos”, acrescentamos a visão do sociólogo paulista Carlos Alberto Dória ao indicar que a identidade não está nas panelas, nem nas papilas, mas, antes de tudo, na linguagem. “É preciso que a língua se aproprie de palavras do universo alimentar tornando-as signos de pertencimento a um dado universo e isso depende de um certo isolamento, que permita designar um conjunto de pessoas como distinto dos demais pelo que comem. Por exemplo: o papa chibé é o modo como se pode designar o paraense ou como ele se apresenta para os de fora. E isso aparece como signo distintivo em contraste com outras modalidades do comer”.
O antropólogo Lody atesta que o imaginário popular valoriza a relação entre comida e identidade por meio dessas expressões populares. Quem nasce no Rio Grande do Norte é conhecido como papa-jerimum ou potiguar, que quer dizer papa-camarões; papa-sururu para os que nascem em Alagoas; ou papa-goiaba para os nascidos no Estado do Rio de Janeiro. Na Bahia, os que nascem em Itabuna são papa-jacas os de Ilhéus, papa-carangueijo e papa-siri. São algumas maneiras de situar homem, comida e lugar, patrimonializando o que se come enquanto atestação de uma cultura, argumenta Lody e acrescenta: “Ao mesmo tempo, os movimentos de patrimonialização da comida buscam matrizes, emblemas e modelos nas sociedades tradicionais. Buscam também a nação, o povo, o segmento étnico, o típico, o que é regional, o que é do lugar, da assinatura de quem cozinha, onde se come, e como se come”.
No entanto, Lody alerta que a identidade não é algo acabado, por isso, prefere falar em identificação e compreendê-la como um processo em movimento. O pensamento do historiador italiano Massimo Montanari segue nessa direção ao definir cultura como o ponto de interseção entre tradição e inovação: “é tradição porque constituída pelos saberes, pelas técnicas, pelos valores que nos são transmitidos. É inovação porque aqueles saberes, aquelas técnicas e aqueles valores modificam a posição do homem no contexto ambiental, tornando-o capaz de experimentar novas realidades. Inovação bem sucedida: assim poderíamos definir a tradição. A cultura é a interface entre as duas perspectivas”.
Conjugar tradição e inovação são alguns dos desafios do plano de salvaguarda que o Estado tem com o registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Essa responsabilidade deve ser dividida com a sociedade para compreender e empreender ações em meio às novas identidades globalizadas. A busca do emblemático, aponta Lody, dialoga e confronta as relações entre global e local; uniformidade e diversidade; indústria e natureza; o mercado e o auto-abastecimento; a modernidade e a tradição. A comida tem vocação patrimonial de testemunho deslocado em muitos e diferentes movimentos, mas sempre reconhecidos no ideal de lugar, de identidade tradicional, atribuindo valor de povo de país, de nação, conclui o antropólogo.
A campanha Comida é Patrimônio está dividida em quatro temas, que servirão de guia para aprofundar o debate para além dos pensamentos-pimenta. Este primeiro artigo aborda o tema Comida é bem material e imaterial, onde é apresentado um breve panorama com a finalidade de apontar o quão pertinente é essa relação entre conhecer e preservar o que se come, de acordo com o território.
Confira os próximos temas:
· Comida é identidade, memória e afeto
·
Comida é dialogo de saberes
·
Modos de viver, produzir e comer
Para participar da campanha, acesse www.facebook.com.br/fbssan
A campanha Comida é Patrimônio é realizada em parceria com a Malagueta Comunicação.
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Referências bibliográficas
ALVES, A. C. A. A comida como patrimônio cultural. Ver. De Economia Agrícola, v. 58, nº 1, p. 73-86.Jan/jun, 2011.
LODY, R. Brasil bom de boca. Temas da antropologia da alimentação. São Paulo: editora SENAC São Paulo, 2008.
MENASHE, R; CALDERÓN, J. L. M (coord.) Cuando la comida se convierte en patrimônio: puntualizando la discussión. In: Patrimonio inmaterial, museos y sociedade. Balaces e perspectivas de futuro. Espanha: Catálogo de publicaciones del Ministerio de Educacion, cultura y esporte, 2013.
PAULA, F. Cultura alimentar e agroextrativismo: saúde na mesa e renda no campo. Ver. Agriculturas – experiências em agroecologia, v 11, nº 4, dezembro de 2014.
DÓRIA, C. A. A identidade culinária está no prato e não na linguagem.www.ebocalivre.blogspot.com. Disponível emhttp://ebocalivre.blogspot.com.br/2015/03/a-identidade-culinaria-esta-na.html, 2015.