“A democracia está a seu favor. Comida de verdade é feita por pessoas de verdade que têm necessidades reais”. Esse foi o tom da palestra proferida pela ativista indiana Vandana Shiva, ovacionada durante a quinta Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN). Há 30 anos à frente de projetos com agricultores familiares na Índia, ela afirma que a agricultura industrial não cuida da nutrição do solo, ao contrário, rouba seus nutrientes. “Cerca de 75% dos solo no mundo está degradado”. Esse modelo agrícola tem origem na guerra. Os produtos químicos usados como gás venenoso e nervoso para matar pessoas passaram a ser utilizados na agricultura como agrotóxicos. As corporações que traziam toxinas, agora trazem venenos e doenças, conforme sinaliza Vandana.
Em decorrência desse sistema, o qual ela considera “exterminador”, a nutrição é roubada na sua diversidade, ao reduzir o número de espécies cultivadas. Mais de dez mil cultivares foram substituídos por trigo, milho, soja, algodão transgênicos. Vandana avalia que a introdução das sementes geneticamente modificadas ampliaram as chances de lucro das empresas que controlam a produção, a distribuição e o consumo de alimentos. “Temos que lutar pela liberdade dos agricultores. Na Índia, resistimos às leis que violariam os direitos às sementes verdadeiras, crioulas”, explica, e cita que em seu país foram criados cerca de 120 bancos de sementes livres de contaminação por agrotóxicos e transgenia.
Vandana aponta a capacidade de renovação dessas sementes. A semente verdadeira produz e se multiplica. Um só grão é capaz de produzir 1 milhão de outras sementes, que são resistentes à seca. “O modelo de produção agroecológico nos dá nutrição, mas o sistema alimentar industrializado elimina a capacidade de resiliência dos cultivos e a nutrição vai embora. A agroecologia produz nutrição e saúde”, declara. A indiana cita que a intolerância ao glúten é causada pela agricultura industrializada. “O cruzamento de espécies é que gerou essa intolerância”, completa. Em busca de sementes mais resistentes, a saúde do solo e dos cidadãos não são preocupações das grandes empresas, que detêm os royalties das sementes patenteadas em laboratório.
O xarope de milho rico em frutose é um desses produtos utilizados em grande escala pela indústria alimentícia, como a coca-cola, que aumenta consideravelmente as possibilidades de lucro e é um desastre para a saúde. “Esse tipo de açúcar, matéria-prima barata para os fabricantes de alimentos, aumenta o nível de insulina, que prova a incidência de diabetes; e a reduz a leptina, um regulador natural do apetite. Com isso, o cérebro envia mensagens de que ainda está com fome, pois perde a referência que o regula. O resultado é o vício por mais produtos alimentícios cada vez mais doces. “Temos que eliminar o xarope de milho de alta frutose”, convoca a ativista e completa: “o alimento que é fonte de saúde é a comida de verdade. A comida falsa é fonte de doenças”.
Da monocultura da produção, a ativista conclui que há uma monocultura da mente. Ela aponta que 70% dos alimentos produzidos no mundo é proveniente dos pequenos agricultores. E adverte que o Brasil, segundo maior produtor de sementes transgênicas, corre o risco de se tornar a república da soja. Depois de comentar sobre a transgenia, Vandana apontou uma nova etapa da mercantilização da comida: alimentos biofortificados. A degradação e desmineralização do solo, provocadas pelo uso de agrotóxicos, são compensadas com a introdução de micronutrientes nas sementes. Com isso, ocorre um desequilíbrio na estrutura da planta que recebe doses desproporcionais de mais ferro e betacaroteno, por exemplo, para corrigir mais um problema que a tecnologia aplicada à produção de alimentos causou. Vandana chama essa produção de alimentos irreais ou pseudoalimentos. “Temos que desafiar as falsas soluções para acabar com a fome e promover alimentação de qualidade. O tema dessa conferência tem um importante significado para o mundo. Os alimentos corrompidos pelo uso de agrotóxicos, transgênicos e biofortificação são a base das epidemias e doenças em nível global”. A biofortificação falhou na Índia, com o arroz dourado, e foi rejeitada nas Filipinas. “A atuação da Fundação Bill e Melinda Gates, responsáveis pela disseminação dessa tecnologia, é criminosa”, afirma.
Vandana conclui que existe uma falta de liberdade de escolha, pois o estilo de vida baseado em ultraprocessados é uma imposição desse contexto de produção de alimentos como mercadorias. “Quem seria tão tolo de escolher alimentos que matam?”. Sua resposta é que “não podemos ter um país livre da fome enquanto depender das tecnologias da Monsanto (principal produtoras de agrotóxicos e sementes transgênicas)”. E conclama à soberania: do conhecimento, das sementes e dos alimentos. “A liberdade é preciosa demais. Não pode ser definida por grandes corporações e acordos internacionais. Querem criminalizar nossa liberdade com um sistema alimentar desonesto, antidemocrático e mentiroso”. A ativista encerra sua participação na Consan com um convite: “vamos celebrar a liberdade e a vida. Que haja menos distância entre quem produz e consome alimentos”.
Antes de regressa para Índia, Vandana deixou um pensamento-pimenta para a campanha Comida é Patrimônio. Em breve, compartilharemos sua contribuição para a campanha organizada pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN).
Texto: Juliana Dias