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Fórum lança o tema do 8º Encontro

Como (não) falar em comida de verdade se a fome está de volta?

O título desse artigo reproduz o tema do 8.º Encontro Nacional do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional que ocorrerá em novembro próximo, no Rio de Janeiro, por ocasião dos 20 anos de existência do Fórum. O título é quase auto-explicativo, dada a relevância da questão a que se refere – acentuada pela grave situação em que se encontra o Brasil. À crescente mobilização social para fazer frente aos problemas associados à má alimentação e aos danos dos sistemas alimentares predominantes, estamos novamente às voltas com o risco do retorno da fome como mazela social que imaginávamos superada.

Pois é, voltamos a falar do risco da fome – isso mesmo, aquela associada à carência absoluta de alimentos – pois é provável que ela esteja novamente afetando parcela significativa da população brasileira. O agravamento da crise econômica iniciada em 2011 e, principalmente, a condução do governo saído do golpe institucional de 2016, jogaram o país num quadro de crescimento acelerado do desemprego e precarização das condições de trabalho, acompanhado da ofensiva desavergonhada contra direitos sociais praticada por elites insaciáveis. Chegamos a trombetear, em 2014, a saída do Brasil do Mapa da Fome – lançado todos os anos pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).

A comemoração era, sem dúvida, justíssima já que se tratava de conquista fruto de muita mobilização social e políticas públicas postas em prática a partir de 2003. Contudo, cá entre nós, é no mínimo constrangedor celebrar a saída de uma condição vergonhosa que perdurava em pleno século XXI, num país grande produtor de alimentos que chegou a ser a sexta maior economia do mundo. Seja como for, é urgente reconstruir as dinâmicas sociais e de políticas públicas, democráticas e participativas em sua essência, que permitiram aquele e outros notáveis avanços, com as revisões naturais de caminhos e procedimentos.

Indo além da emergência, precisamos falar sobre o lugar central ocupado pelos alimentos e pela alimentação nas nossas vidas e na própria organização das sociedades. O que comemos ou deixamos de comer, as maneiras como nos alimentamos e os modos como os alimentos são produzidos e distribuídos estão entre os determinantes principais de uma vida digna e saudável, do bem estar e convívio social, e do respeito para com a natureza. O Fórum, assim como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), têm mobilizado a sociedade brasileira pela “comida de verdade, no campo e na cidade”.

Não sem razão, já que são muitos os problemas e malefícios associados à produção, distribuição e consumo de alimentos, dos quais o Brasil, lamentavelmente, oferece numerosos exemplos. Caminhamos aceleradamente para apresentar indicadores de sobrepeso e obesidade próximos aos dos campeões mundiais nessa matéria (Estados Unidos e México). Maus hábitos alimentares e ausência de atividades físicas aparecem como explicações. Porém, ressalte-se o crescente consumo de ultra-processados sob indução das grandes corporações e dos meios de comunicação, sempre resistentes à regulamentação da propaganda de alimentos que é parte substantiva do seu faturamento.

Fala-se menos sobre a dieta nutricionalmente pobre, assentada em um pequeno número de bens primários e seus derivados, produzidos em larga escala por sistemas alimentares tidos como eficientes garantidores de nossa segurança alimentar e do mundo. O Brasil é um dos maiores exportadores mundiais de produtos agroalimentares. A realidade, no entanto, é bem outra. Como se comprova facilmente, “comer mal custa mais barato”, sendo este o verdadeiro grande feito dos sistemas dominados pelas corporações, redes de supermercado e o incensado agronegócio. Isto acompanhado dos danos sociais e ambientais da expansão da monocultura e da pecuária de larga escala, e dos alimentos cheios de veneno que nos fornecem com farto apoio estatal na forma de crédito, infra-estrutura e pesquisa. Veneno são os agrotóxicos que recebem o nome higiênico de defensivos fitossanitários.

O contraponto está em promove disponibilidade de alimentos diversificados, acessíveis e respeitadores das culturas alimentares, começando por uma agricultura diversificada de base familiar que valorize a biodiversidade e adote métodos agroecológicos, e incluindo formas de comercialização que tornem esse tipo de alimentação acessível a todos os segmentos da população. Há tempos que o abastecimento alimentar da população brasileira está sob quase exclusiva regulação privada, com os governos federal, estaduais e municipais retraídos em sua função por excelência que é a regulação pública de atividades vitais.

Os problemas mencionados e outros mais não incidem igualmente sobre todos os setores sociais. Como é característico da sociedade brasileira, a alimentação também expressa as iniquidades que faz do Brasil uma das sociedades mais desiguais do mundo. Alimentação de má qualidade e carências nutricionais incidem desigualmente nos mais pobres, nas mulheres, nas populações negras e indígenas, nas crianças e em territórios determinados, quase sempre na forma de uma combinação desses fatores revelando que a má alimentação tem sexo, cor/etnia, idade e residência.

No contexto pré-eleitoral em que nos encontramos, é decepcionante, mas não surpreendente, constatar que questões como as aqui ressaltadas estejam quase ausentes do debate eleitoral. Cabe resistir ao retrocesso e investir nesse debate. Longe de mim subestimar a gravidade da violência física que grassa no país e a complexidade de seu enfrentamento, porém, em lugar do porte de armas, polícias e magistrados ocuparem o centro das atenções, a segurança que eu gostaria de ver também debatida, com o mesmo destaque, é a de uma vida digna e saudável, com emprego, valorizadora da diversidade cultural e socioambiental. Estou certo de que a questão alimentar desempenha papel de relevo nessa direção, mas ela não admite baboseiras, platitudes e demagogias.

O artigo foi publicado originalmente no Diário do Engenho. 

Renato Maluf é professor do CPDA/UFRRJ.

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